O ajuda
Enrosquei-me. Puxei os trapos que faziam as vezes dos cobertores e aconcheguei-me melhor. Fingi não ouvir. Qual despertador? «Aquele maldito galo, ainda um dia destes lhe torço o pescoço» sentenciei para comigo
Minha mãe não esteve pelos ajustes, lá do seu canto, bradou: «Zé… tás ouvindo? O galo da Chamiça já cantou!» Maria Chamiça era a nossa vizinha do lado. Criava umas galinhas que de dia andavam à solta ali pelo terreiro e à noite recolhiam a um improvisado galinheiro nas traseiras do casebre. Era tão pobre quanto nós.
— Já vou – respondi — tá um frio de rachar... só mais um bocadinho...
Dai a pouco, minha mãe voltou à carga: «Zé, tá na hora... Olha para o que te havia de dar?! Olha qu’isto… tal não é a preguiceira que ai vai.» Depois, mais serena, implorando: «Levanta-te filho… tem que ser…»
Não havia outro remédio. Pés no chão, enfiei à pressa as velhas calças e deitei a jaqueta pelos ombros. [De tão grande, aquela jaqueta parecia um sobretudo. Meu pai tinha-a comprado pelo Santo Amaro. Nem a chegou a estrear... morreu dai a pouco tempo... Tinha eu feito… sete anos... (Ora eu faço anos em Março, deixa cá ver Zé, deixa cá ver... Foi aí pelo cabo de Abril.) Morreu por causa d'umas febres, dessas febres manhosas que matam os pobres.]
Agarrei no farnel que minha mãe preparou e botei os pés ao caminho. Literalmente os pés. Sapatos eram indumentária que na época não faziam parte dos meus usos. Calcei as primeiras botas, no dia em que tirei sortes... [Fiquei tão satisfeito com elas (emprestou-mas meu tio) que andei rua abaixo, rua acima… Arrastava os pés... para ver se alguém olhava. Apenas a Maria reparou... «Que belo par de botas Zé! Onde é que as arranjaste?» Casamos dai a uns anos. Ela, toda bem arranjadinha – Estava tão bonita a minha Maria! – eu, com um fato que me emprestou meu tio Filipe… Nesse dia, à tarde, ainda fui à azeitona por conta do Mendão.]
Alguém tem que sustentar a casa, desde que meu pai morreu, vivíamos da caridade duns e de outros. Por mor dessa caridade nasceu a minha irmã mais nova. A minha mãe ajustou-me trabalho com o Tonho de Má Raça. Má Raça era, por esse então o maioral das vacas da Herdade da Melriça e constou-se que estava precisando de um ajuda.
Ainda hoje me lembro bem. Fomos os dois, eu e a minha mãe, a casa dele. Morava no Canto da Aldeia, ali para os lados do Penedo Monteiro. Chegamos, minha mãe bateu à porta, apareceu a mulher: «Atão, ó que vens Ana?» Ana era o nome de minha mãe, que sem responder, logo perguntou: «Tá cá o teu home?»
Que não estava — disse a dona da casa — «Ele anda cas vacas da Melriça e só vem a casa pró cabo do mês...»
Minha mãe explicou ao que íamos.
— Fica descansada que logo que o mê home venha eu falo com ele e do que houver, mando recado.
Minha mãe desfez-se em agradecimentos, depois pegou-me na mão e voltamos para casa. Pelo caminho ainda me disse: «Zé, olha co Tonho de Má Raça, tem este anechim mas não é má diabo, se te portares bem, ele faz de ti um homem»
Ui... que frio... Um manto branquinho cobria os caminhos. Dali, do Cipresteiro onde morávamos, eu, as minhas irmãs e a nossa mãe, até à Melriça ainda é longe...
O melhor é correr, pensei. Correndo enganamos a geada e espantamos o frio...
Já não sentia os pés quando avistei umas vacas enroscadas debaixo dum chaparro. Com o auxílio de umas pedras enxotei-as… Estava tão morninho aquele pedaço de chão... Enrolei-me na jaqueta de meu pai e tentei agarrar o quentinho...
Já o Sol ia alto, quando acordei... Corri o mais que pude para a Melriça... Esbaforido, procurei ao caseiro pelo maioral das vacas.
— O maioral… olha rapaz já faz tempo que daqui saiu… a estas horas já deve ir chegando à barragem.
Perplexo questionei: Atão e agora? Eu vinha trabalhar com ele… sou o ajuda…
Virou-me as costas e por entre dentes murmurou:
— Atão agora… Olha, voltas para d'onde vieste que ele logo arranja quem chegue a horas...
— Deixei-me dormir senhor…Estava tanto frio que não era capaz de andar… Adormeci…
— E que não tenha frio. Concluiu o caseiro.
José Carrilho
Castelo de Vide, Janeiro de 2006
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